Alguns demônios precisam ser exercidos.

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5 min readApr 7, 2023

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Se a mente vazia é oficina do Diabo, ao colocar a cabeça no travesseiro as 2 da madrugada depois de um dia de “gás”, é Satanás que opera. Ele tortura relembrando as falhas, erros e arrependimentos. A frase dita e não dita, o feito e não feito. No entanto, durante o dia, nossas mentes estão ocupadas com tarefas mesquinhas e, seguindo a lógica, Deus está no comando.

Encher a cabeça de afazeres pode ser compreendida como uma estratégia do Eu para reprimir os desejos do inconsciente. Quando dormimos, é como se houvesse um afrouxamento da realidade que retorna desejos oprimidos no formato de sonhos, obra prima de Satanás. Como Deus descansou depois do sétimo dia, o Eu faz o mesmo.

Engraçado, quando separamos as letras do meio de “Deus”, temos nós — eu, você, que devem ser desatados (não podia deixar essa passar) –. “Eu” deriva do indo-europeu “eghóm” (eu/mim) e “evoluiu” para o grego “egō”. Difícil imaginar qualquer tipo de comunicação humana sem usar essa palavra que, no geral, representa o que é individual para aquele sujeito. Nesse ponto, Eu e Deus também somos (são) semelhantes. É impensável imaginar qualquer organização humana sem a presença de uma — ou várias — figuras superiores.

Na idade média, a vida regrada por DeusEs garantia uma certa eternidade do tempo. O futuro racional não existia. Tanto é que no antigo teatro grego, as peças seguiam uma ordem cronológica do tempo e normalmente tinham duração de um dia inteiro. Mitos geralmente começam ao amanhecer e finalizam ao final do dia, acompanhados de uma morte trágica e precoce do herói. Não havia futuro, senão aquele direcionado pelos deuses.

A ascensão da racionalidade em contraposição a religião, fez o homem pensar no futuro e esquecer do passado. A transição do mito pela razão tira o mundo dos deuses e o coloca nas mãos dos homens (que obviamente, ainda usam Deus para justificar as atrocidades do avanço científico). O lançamento do Sputnik é emblemático nesse sentido. O imaginário (hoje muito perto de ser realizado) de viagens e colonização interplanetárias deu a oportunidade da humanidade de vislumbrar um futuro novo, sem a presença de Deus.

Nota de recomendação: Hello Tomorrow, no TV+. Um picareta ganha dinheiro vendendo terrenos na lua numa comédia dramática retro-futurista.

No mundo contemporâneo não há tempo para futuro, ele acontece no presente. Mas tormento divino segue. Ao contrário do que pensavam os queridos da idade moderna, Deus não esteve ausente na era da razão e muito menos na contemporaneidade. Pelo contrário, o caráter fluido da sua existência permite que ele se modifique para cada época. Antes castigava. Percebendo que sua política de relações estava falha, passou a amar. Agora, vende cursos online e implora por engajamento. O smartphone pode ser enxergado como um novo templo. Rituais estão em um único dispositivo. A dúvida que antes era respondida por oráculos, por deuses, hoje é feita pelo Google — e com um certo grau de imprecisão, pelo ChatGPT –. Tal qual o homem não conseguiria existir sem a igreja tempos atrás, é improvável hoje considerar a vida sem um celular no bolso. A nossa imagem é a própria oferenda e o like, recompensa.

A intensidade constante é a marca do mundo contemporâneo. E como disse no começo do texto, essa é a operação do sagrado. A igreja se esvaziou porque não precisamos estar no ponto mais alto do céu para receber as graças do pai. Uma foto pode resolver temporariamente. O like vai prover uma satisfação curta. O post de hoje não vai fazer sucesso amanhã, e talvez o de amanhã não faça tanto sucesso como o de ontem. É preciso publicar todo dia para manter uma conta relevante.

Enfim. Tornando as tarefas mesquinhas. O excesso causa cegueira, a mesma de Saramago e da primeira temporada de See, série da Apple TV (outra recomendação, principalmente se gostar de tramas épicos). A sobrecarga de estímulos que nos são direcionados pode dificultar a elaboração sobre o espaço e sobre nós mesmos. Cegos por produtividade, na presença constante do divino, somos convocados para fora e esquecemos de repousar.

No começo da pandemia, quando um surto de sensatez colocou as pessoas dentro de casa por algumas semanas, a queda abrupta na insuportável rotina diária provocou o mais grave dos questionamentos: por que? […] levamos essa vida estúpida; as pessoas estão morrendo; meu relacionamento é um fardo; trabalho com isso; estudo aquilo mesmo sem gostar? O sujeito não se reconheceu na própria vida, porque ao invés de escolher, reagiu a situação de crise. Enquanto uma experiência de “susto” coloca o sujeito em estado de prontidão, a busca infindável pelo encontro divino na contemporaneidade adoece por produzir crises crônicas que levam à exaustão. Essa, a meu ver, compõe a tríade dos principais sintomas contemporâneos, junto de ansiedade e insônia.

Enquanto a reação diz respeito a atitudes outras, a escolha é um comportamento próprio. Encarar as escolhas infelizes da vida é uma atitude dolorosa. No descontrole de lucidez que o encontro consigo causou durante a pandemia, caímos num poço depressivo.

A angústia coloca a depressão e ansiedade hoje onde estava a histeria no século 19. Pessoas que sofrem “sem motivo”. Coincidentemente, os tratamentos contemporâneos também não pretendem investigar as reais causas dos sintomas, ou se resumem à uma fraca suposição de desordem na produção de neurotransmissores X ou Y. Uma droga responde melhor ao estilo de vida que adotamos. Se o passado não existe e o futuro também não, investigar as causas dos sintomas é inútil.

Retomando a analogia, Eu e Deus estamos juntos. A saída, irônica, é desatar esse nó. Não no sentido de dar ainda mais espaço ao Eu, mas de separar-se do que nos afasta das próprias angústias. Não há personagem melhor para essa função do que o Demônio. Alguns deles precisam ser exercidos, ao invés de exorcizados. É óbvio, relações diabólicas exigem um pagamento. Enfrentar a resposta do “por que?” é caro enem todos estão dispostos a bancar.

Preencher o dia com tarefas mesquinhas é escapar do que dói. 1% todo dia é discurso publicitário. Ninguém consegue viver a produtividade infinita que prega no Instagram. O fracasso de hoje é o de ontem, provavelmente será o de amanhã.

Você pode até tentar continuar vagando pelo TikTok, adiando o sono até a hora do próximo compromisso. Mas uma hora a conta chega e o garçom tem um tridente. Vai ter a eternidade para cobrar.

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