Fanboy de Igreja

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8 min readMar 29, 2022

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O que é religião? Uma busca rápida no google nos diz que é “um conjunto de símbolos e rituais que possuem significados amparados pela crença de um grupo de fiéis.” Entretanto, essa definição é rasa por não explicar conceitos de objetos e fenômenos inseridos dentro do sistema religioso.

Religião vem do termo religio, do latim. Significa “culto”, “cerimônia”. O fazer religioso é descrito por relegere (reler ou revisitar) ou religare (religar). No primeiro caso, podemos entender que religião é a reinterpretação dos textos ou doutrinas — a Bíblia, por exemplo, tem diferentes interpretações de diferentes organizações religiosas — . Religare compreende a ligação da humanidade com o divino. Ambas as definições concordam que a religião é responsável por ligar o homem á divindades e, portanto, esse é o seu objeto (de estudo, talvez?).

No mundo ocidental, compreendemos religião como a mediação entre o homem e entidades superiores. Geralmente — por conta da cultura judaico-cristã — , pode ser verificada a presença de crenças em um único Deus transcendental. Do outro lado, o pensamento budista e hinduísta vindos do oriente não dão características transcendentais á suas divindades. No caso dessas religiões, Deus está em tudo: a natureza e os demais seres vivos são representações divinas.

O que se nota, em ambos os casos, é que o objeto da religião está relacionado com algo que vai além da realidade ou do campo de estudo das ciências. Mas depende. Antropólogos podem fazer a definição de religião, afinal, estudam o homem em suas questões biológicas, sociais e culturais. Tylor (1920) descreve a religião de palavras simples: a crença em seres espirituais. Num conceito mais profundo, podemos dizer que a religião é a conciliação de poderes que estão acima do homem e controlam o curso da natureza e da vida humana (Frazer, 1974).

Se você é ateísta e procura aqui um conforto para sua crença-em-nada, deixo as amargas definições de Feurbach (1854): “a religião é a adoração humana” -; Marx (1976): a religião é o ópio do povo -; e Freud (2008), minha preferida: “a religião é a neurose obsessiva universal”. Outros autores, como Durkheim (2001), tem uma visão menos cruel. Para Durkheim, a religião é simplesmente algo sagrado. Ou seja, não é concreto porque não há como verificar sua existência terrestre.

Claro, o sagrado pode ser presente na sua vida. Já ouvi de algumas pessoas que tiveram o contato com Deus de diferentes formas. Por isso, Stark e Bainbridge (1980), consideram que o sagrado é real, mas ao mesmo tempo é sobrenatural e tem consciência de desejos. Feuerbach (1854) diria que o sagrado era a projeção do homem ideal. Projeção, consciência e desejos? Chamem Freud (2008) e ele dirá que o sagrado é a projeção da figura paterna. Ousado.

Em Totem e Tabu, Freud vai se debruçar nos braços do Pai — não podia deixar essa passar -. Ao tentar compreender a origem dos símbolos sagrados — totens — e as diferentes formas de tabu — proibições sem origem definida -, Freud reconstrói o mito da morte do Pai Primitivo, aquele que tinha acesso a todas as mulheres e consegue analisar nele as origens da religião, da moral e vida social. Na mesma obra, ele ainda diz que a psicanálise não poderá explicar sozinha as origens do fenômeno religioso, mesmo que dê ênfase a isso em outras 4 obras (Psicologia das massas; O Mal Estar na Civilização; Moisés e o Monoteísmo).

Dado o pontapé dos conceitos, perceba que embora Deus seja retratado em todos os sentidos — afinal, falar de religião é falar do divino -, não há uma instituição religiosa sequer mencionada. Estudar as origens políticas da organização religiosa é separada por um abismo sobrenatural pelo qual talvez nunca possamos explicar. Digo, a existência de Deus é uma coisa. A existência da igreja católica, por exemplo, é outra. E por ser instituição, há de se convir que existem elementos de grande força política, social e econômica por trás.

Por isso que retomo ao primeiro texto. Discutir a existência de Deus ou não é coisa do passado. O ateísta pode até não crer, mas tentar comprovar a sua inexistência vai ser uma tarefa muito mais árdua do que o contrário. A questão é que Deus existe e está no meio de nós, e sem ninguém perguntar sobre a sua intenção de existência, colocaram-no entre leis, convenções, guerras, dinheiro e mortes. Que a minha família perdoe, mas a igreja católica historicamente vem aproximando Deus de desgraças. Brinco até com uns amigos sobre a vacina. Dado o histórico pregresso, a vacina pra Covid é invenção do Diabo que quer, ao fim da força, que continuemos vivendo e sofrendo nesse mundo arquitetado para o mal (assisti The Good Place, você não? Deveria). Se dependesse do Deus cristão, meteoro seria a mais fraca das alternativas para dizimar a humanidade.

Veja que discutir sobre religião não precisa envolver a crença. Aliás, é uma falta de respeito questionar a crença de alguém. Se a ciência ainda não responde suas questões, tudo bem, há um sagrado para isso. Caso esse ponto seja válido, por que o contrário não? Por que Deus não pode somente ser? Porque a religião não coloca só Deus no meio de nós, mas uma surra de elementos simbólicos e sociais que devemos obedecer, seguir e louvar. Por muitas vezes, ainda retribuem a surra em outros que não compactuam com as mesmas crenças religiosas.

Em resumo, não falo de fé. Falo de um sistema de formação de símbolos que estabelecem fortes sentimentos nos sujeitos e ordenam suas motivações, como Geertz (1996). Esses sistemas precisaram se unir numa estrutura física, a qual os usuários compartilham suas crenças e práticas. Durkheim chamou essa estrutura de… Igreja.

Uma instituição religiosa — e vou chamar desse jeito para que não tenham dúvidas sobre quem falo — é dividida em três elementos interligados na prática. O símbolo, que confere as crenças, práticas e símbolos; o elemento abstrato, que corresponde a visão do mundo e valores; e a coletividade, que abrange as experiencias coletivas dos indivíduos dentro do sistema religioso.

Durkheim (2001) define as crenças como uma representação da natureza para as coisas sagradas, ou relações entre elas e o profano. Precisam, portanto, de uma compreensão humana para julgar o que é sagrado e o que é profano. Práticas são as relações do homem com o sagrado, como ritos, rituais e orações. A (não) saudosa missa do meio-dia é um rito que se apresenta como forma de reverenciar, adorar, rogar e agradecer em comunidade. Por meio desses cultos, os fiéis podem expressar a fé e criam ou recriam relações entre si e o sagrado. O casamento, por exemplo, é um ritual que marca a mudança do papel social entre duas pessoas e, por consequência, faz com que os sujeitos envolvidos atinjam a expectativa social do grupo religioso. Símbolos, como o próprio nome diz, são objetos, expressões ou palavras que guardam significados — por vezes, quem diz amém sequer sabe o que significa a palavra — e que podem ser dramatizados ou narrados em histórias. O Oratório de Santa Luzia, por exemplo, é a encenação de parte da história da padroeira de Mossoró/RN. A leitura do evangelho representa outro símbolo. Essas são as ferramentas religiosas mais fortes para concretizar a visão de uma pessoa ou grupo acerca de elementos. Dão sentido, de alguma forma, á vida e aos pensamentos das pessoas.

A visão do mundo talvez seja a mais influente para os que não estão dentro do contexto religioso. É ela que representa como os membros irão interpretar os fatos e agir em sociedade (agem sobre os valores). Luckmann (1970), diz que é a visão de mundo que dá contexto ao passado e traça o indivíduo no futuro. Com esse elemento, o fiel pode ser localizado na história (bem como localizar outras pessoas). As crenças práticas e símbolos reforçam os comportamentos sociais que a visão de mundo imposto pela igreja decide. O deus católico — que eu estou mais habituado a falar -, por exemplo, é ciente, poderoso e se preocupa com questões morais. Por Deus, pela família. A igreja coloca deus nessa situação, sem questioná-lo, para sustentar seus próprios princípios éticos e morais.

E claro, as religiões são coletivas. Ou seja, podem ser compreendidas de maneira organizacional. A magia é diferente: os rituais mágicos não são necessariamente coletivos. É essa institucionalidade que promove todos os fatores anteriores, uma vez que organizam os aspectos religioso. Por essas características, é possível concluir que a religião é uma experiência comunitária. Mesmo através de expressões individuais, como a oração ou a meditação, as práticas em comunidade são de fundamental importância para a perpetuação do sagrado (que se, caso ainda não tiver entendido, é o objeto da religião).

Um outro elemento ainda pouco discutido é o capital. Igrejas, inevitavelmente, precisam de dinheiro para perpetuar seus valores. Não acho que seja exagero dizer que as igrejas, com todos esses componentes, sejam empresas. Gosto de dar nome aos bois. Empresas tem produtos e serviços, precisam estar atentas à concorrência e estudar o seu público consumidor. Outras complicações podem surgir dessa interpretação: qual é o bem que as igrejas comercializam? Quais estratégias utilizam para venda? Quem são os concorrentes do catolicismo?

Não são questões fáceis de responder dentro da psicologia. Psicólogos não precisam saber que o produto mais rentável do McDonalds é o ramo imobiliário — como a pipoca do cinema, que tem uma margem de lucro exorbitante — . Mas um estudo mais profundo sobre as organizações implica nessa reflexão.

No texto passado retratei como enxergava a igreja: um local quente, desconfortável e opressor. Como estão as igrejas hoje? Não raro encontramos esses espaços com ar-condicionado, bancos estofados. Quem sabe um espaço para as crianças se divertirem sem atrapalhar a missa. Ainda há eventos exclusivo para jovens — seus pais não irão pagar o dízimo por muito tempo — ; e pelo menos no catolicismo, o Papa vagarosamente volta a ser pop. Os cânticos antigos dão espaço á música eletrônica, acústica. Mas isso tudo não significa dizer que a Igreja vende seu rito (como a missa ou culto). A igreja vende fé. Nos últimos tempos, gourmetizaram o encontro com o sagrado. O cliente não paga o dízimo para a missa, agora ele compra uma experiência religiosa.

Se você é religioso, o parágrafo anterior pode ter sido uma blasfêmia. Por favor, permita minha defesa: não falo de Deus. Sequer abomino essas práticas. Afinal, a religião escolheu trilhar esse caminho e precisa se reinventar para conquistar mais fiéis. Mas me dou ao luxo de outro ataque. Se você, leitor religioso, se ofendeu, considere não acreditar em Deus, mas na sua instituição. É um fanboy de igreja.

Compreender a Igreja como um sistema, movido por capital, delimita meu discurso e crítica. A existência de Deus ou não, de novo, é indiscutível. Quem sou eu pra criticar o divino? Mas para discutir sobre religião, Ele não importa. É equivocado da nossa parte tentar compreender esse fenômeno — e qualquer outro — somente pela psicologia. Não fossem os trabalhos antropológicos, que permitiram definir os elementos religiosos, sequer questionaríamos de maneira profunda a influência deles nas nossas vidas.

Em breve, nos lemos de novo.

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